TERCEIRA TÂMARA (4 de Junho de 2019, terça-feira)
O Iftar de segunda-feira dia 3 faz-se em suspenso em frente à televisão ou ao telemóvel aguardando a comunicação. Só às nove da noite daquele próprio dia é que se soube que aquele seria o último dia de Ramadão. Sendo o calendário islâmico lunar, isto é sincronizado com o movimento da lua, não é com muita antecedência que se consegue determinar com exatidão o fim do Ramadão, entre um de dois dias. É o avistamento da Lua Nova que o dita, a mudança da lua que faz a passagem do nono para décimo mês, do Ramadão para o Shawwal. Apenas aquando a divulgação é que se toma como garantido – em Portugal o Ramadão termina dia 3 de Junho, na Jordânia termina a 4.
O primeiro dia do Shawwal é o primeiro dia da festa do Eid al Fitr que marca o fim do jejum. É um dia muito especial que festeja a força, a clarividência, o progresso que a vivência de mais um Ramadão concede. A festa, essa, é preparada com antecedência: sobre a limpeza da casa há um enfoque conjunto e determinante pois o Eid envolve uma grande mobilidade da família que ora se visita ora se recebe, e uma casa limpa e cuidada é entendida como uma mostra primordial de respeito pelos convidados. Depois há roupa nova para estrear, chocolates para oferecer, ingredientes aguardando por aquele prato que já se deseja. E há Mahmouls, os bolinhos feitos de sêmola, leite e manteiga com recheio de tâmaras.
Às sete e meia da manhã é fácil identificar os homens que se encaminham para a oração comunal, um momento central desta festa. Em cada paragem entre Cacilhas e Corroios pequenos grupo de homens entram no metro, muitos trazem vestidas túnicas claras, e entre bocejos reconhecesse-lhes a felicidade. Chegados à última paragem, enquanto dezenas de pessoas acorrem para o próximo meio de transporte nesta hora de ponta, para aqueles homens hoje é dia de festa, é dia de folga.
Devido à dimensão controlada, esta oração não é feita na mesquita mas num espaço amplo, por forma a permitir acolher a comunidade que participa. Ahmad acompanha um pequeno grupo de homens que se encaminha para o campo de futebol a céu aberto. As imediações estão repletas de carros. Os homens descalçam-se junto à linha lateral traçada no campo. No chão relvado ao centro estão esticadas quatro longas tiras de tecido branco com cerca de um metro de largura, onde eles se sentam. Junto à linha de fundo, separada das restantes, há mais uma faixa de tecido sobre a qual estão distribuídos pratos com bolos e sandes e jarros de água e sumo, e ao redor da qual alguns homens ainda estão sentados.
Uma menina, pré-pubertária, está sentada no banco lateral destinado ao treinador. É a única mulher no recinto, porque não é mulher ainda. Quando eu entro um senhor dirige-se a mim trazendo um prato de plástico com dois enormes pedaços de croissant de chocolate e dá-me as boas vindas. Enquanto lhe falo ele não me olha nos olhos, antes posiciona o ouvido na minha direção. Levo o prato com o bolo para o banco do treinador e sento-me junto da rapariga. Ofereço-lhe mas ela não aceita. Hoje não vai à escola, hoje é dia de festa. Algum tempo depois uma mulher aproxima-se do campo mas não entra no recinto. Tem a cabeça coberta mas veste roupa ocidental, uma blusa rosa, bermudas e sandálias nos pés. Tira um par de fotografias com o telemóvel e vejo-a voltar para o carro, para o lugar do pendura, onde aguarda pelo marido.
A comida é arrumada e todos se sentam lado a lado, virados para Meca. O Iman fala ao microfone, fala de humildade e de partilha, e diz “O que pedires primeiro para os outros, então Alá dar-te-á a ti. Pede saúde para os outros, pede o bom para os outros, faz o bem aos outros, e então tu também receberás o bem…”
Após o sermão há mais homens que se juntam, que acorrem descalçando-se rapidamente junto à linha lateral e posicionando-se sobre os lugares vagos do último longo lenço. A oração está prestes a começar. Os homens levantam-se e há um silêncio que se instala. São tantos homens juntos e o silêncio é enorme. O Iman dita a oração. Entre as palavras que não conheço há uma canção.
Por esta hora na Jordânia ainda se está em jejum. No caminho de volta para o Miratejo Ahmad envia mensagens à família dizendo “Já estou a beber água, já estou a comer!” pontuadas por emojis sorridentes. Para Ahmad, no entanto, este dia deixa-lhe um sentimento mais de desprendimento do que de encontro, pois ainda que o calendário o diga, ele não sente estar a viver o Eid al Fitr – para ele o Eid é feito de família e de inúmeras pequenas tradições que ele não tem como recriar. Ainda que haja ações que ele pode realizar e que são visualmente semelhantes, é no entanto o sentir dentro delas que marca a experiência.
Na Jordânia, na manhã do Eid, a família sai cedo de casa a caminho desse lugar amplo já definido, normalmente um estádio de futebol. O recinto está dividido em duas áreas, uma para os homens, outra para as mulheres, que ainda que separados, rezam juntos dentro da multidão, partilhando a mesma experiência.
Regressados a casa tomam o pequeno-almoço que deixa uma estranha sensação após 30 dias de jejum, e de seguida toda a gente na casa se aperalta vestindo a roupa nova preparada e o rebuliço é grande. No primeiro dia do Eid é de especial importância visitar as mulheres da família como sinal de respeito pela particular dedicação durante o Ramadão. Khaled e os filhos saem para visitar as tias e as primas oferecendo-lhes dinheiro como agradecimento, e sendo acolhidos com chocolate, café e mahmouls. Por outro lado, Haijar e as filhas aguardam em casa pois a qualquer momento chegarão os tios e os primos para lhes ofertar igualmente a visita. É um êxodo de homens que se movem e uma mansidão de mulheres que esperam, por eles aguardando.
Neste dia há um sentir mais profundo da distância que separa Portugal da Jordânia, pois se o Ramadão leva à interioridade, a festa do Eid al Fitr é uma festa de encontro e de relação. Neste dia a distância parece maior porque é ela quem não permite a Ahmad um festejo pleno. A refeição típica para este dia é o Mansaf, o prato tradicional, mas o âmago da festa reside nas pessoas à volta da mesa.