Quina

A casa anfitriã

Maria Joaquina, a quem todos conhecem por “Quina”, viveu desde sempre na Sobreda.
Foi baptizada na Capela de Sto. António da Sobreda, a que integra o edifício principal do Solar. Devido ao mau estado em que se encontrava, a Capela era raramente utilizada, pelo que o baptismo de um neto Piano era a oportunidade para outras crianças das proximidades receberem também este sacramento. Nestas ocasiões, Maria do Rosário, esposa de António Piano, oferecia aos meninos pobres um pequeno enxoval.

Portão da casa onde Quina nasceu e viveu até aos 12 anos, por trás da Igreja do Livramento – Anos 50

Quina foi uma das primeiras raparigas da Sobreda a estudar para além da 4ª classe. Era uma criança franzina, “uma fraca aposta para força de trabalho no campo”, e a sua primeira professora deixou a recomendação à família que seria um desperdício se ela não fosse estudar. Quina passou os sete anos seguintes a apanhar a carreira para frequentar o colégio Frei Luís de Sousa em Almada levando consigo a advertência da mãe:

“Está ciente que tu não és como as outras – elas são ricas e tu não.”​

A mãe de Quina trabalhava na costura. O pai trabalhava no campo, foi corticeiro numa fábrica da Cova da Piedade, vendedor de peixe ao volante de uma carrinha, motorista para uma casa particular. Até que alguém lhe comentou que o sr. Piano, que privilegiava recrutar os seus funcionários na Sobreda, estava a precisar de motorista. Passou assim a ser o pai de Quina quem, na Primavera, trazia a família Piano para o Solar, vindos da casa de Cascais onde residiam durante as estações frias.

“Ia-se ver os carros a aparecer, que eram muitos porque a família vinha acompanhada de uma comitiva de 30, 40 pessoas. A sua chegada era uma animação, toda a Sobreda fervilhava, tudo mudava aqui. A mim aquilo não me interessava.”

A quermesse instalada em frente ao Solar na festa anual – Anos 50

“Certo Domingo, a minha mãe vestiu-me a minha melhor roupa e disse-me «Quero que vás à missa lá abaixo aos Pianos.» Todas queriam ir a correr. Eu não. A minha mãe pôs-me fora do portão de casa para me forçar, mas eu fiz um estardalhaço tão grande, dei murros e encontrões ao portão porque não queria ser obrigada a ir e a mostrar-me, até que a minha avó apareceu e defendeu a minha posição. A mim aquilo não me interessava.”

“Quando a minha mãe me dizia que eu não era como as outras era verdade, eu não era mesmo. A subserviência não me encaixava, aquele adorar e corresponder…”

Ainda que de forma fugaz, Quina deslocava-se ao Solar diariamente para comprar leite fresco, ao fundo do pátio à esquerda, onde a caseira o preparava. O chão era de pedra larga e estava tudo sempre muito asseado. “Ó tia Maria Emília!” – chamava. “Já lá vou…” A caseira utilizava um púcaro como medidor para encher a bilha de alumínio de um litro que Quina levava entre as mãos.
Mensalmente dirigia-se à sala da costura, à entrada à esquerda, para receber as quotas da igreja. “As senhoras da casa estavam junto às janelas, viradas para o Largo do Rio, a costurar. Eu ficava à porta à espera que viessem ter comigo.”

Festa anual. A procissão demorava-se diante do Solar de onde saía a figura de Santo António para o andor. Crianças olham os foguetes que estoiram no céu – Julho, anos 60
Festa anual. Varandim engalanado com colchas diante das casas das empregadas da família Piano – Julho, anos 60

Ainda que se deixasse ficar à distância, Quina testemunhou de perto a importância da família Piano na Sobreda.

“O sr. Piano tinha uma postura de proximidade e respeitabilidade. Reedificou a Escola Primária e o Clube Recreativo como dádivas à população. O dia da inauguração da sede do Clube, que havia sido construída de raiz, foi muito importante na consolidação da relação entre a família e o povo.”

Dia da inauguração da nova sede do Clube Recreativo e de Instrução Sobredense, doada pela família Piano à população, que se reúne no Solar.
Dia da inauguração da nova sede do Clube, durante a leitura do discurso. António José Piano Júnior ao centro.

E ao final da tarde, quando o jantar estava pronto na casa dos Piano, “a cozinheira tocava o sino para chamar para a mesa. Aquele som ecoava dentro dos muros do jardim espalhando-se depois pela vizinhança.” Tal como o ressoar do sino, que se expande pelo espaço e se prolonga no tempo, assim foi a passagem desta família pelo Solar.

Atividades com crianças da Sobreda com organização da Comissão de Moradores. Solar ao fundo – 1975

Imagens: Maria Joaquina, espólio particular