Shabnam é uma mulher a quem parece ser difícil esconder o sorriso. Os seus cabelos longos e escuros e o brilho no olhar embelezam-lhe o semblante.
O cabelo comprido teve-o desde criança, ainda que normalmente enrolado sobre si e agilmente preso na nuca, num gesto diário no qual já não se pensa, ainda a espreguiçar-se na única divisão que a família partilhava. Com o nascer do sol, a sua casa despertava ao som do sino dos vizinhos na oração Hindu da manhã, enquanto eles cantavam em alta voz e punham cânfora a queimar. E à medida que aquele odor perfumado se esgueirava das janelas próximas e se espalhava no ar, havia muita coisa a fazer antes de as crianças saírem para a escola.
– Durante muitos anos vivi naquela casa, situada num bairro bom de Mumbai. Mas enquanto eu crescia, nos anos oitenta, a Índia estava também a aprender a viver em liberdade, e isso significava por exemplo, uma gestão apertada dos recursos. Era habitual só haver água acessível pela rede pública durante três a quatro horas de manhã, pelo que começávamos o dia de forma acelerada. «Despachem-se! Vamos, vamos, não tarda a água acaba!», pressionava a minha mãe. Não havia máquinas automáticas, então lavávamos a roupa à mão, cozinhávamos, limpávamos a casa, e finalmente preparávamo-nos para ir para a escola.
E enquanto punha os últimos ganchos no cabelo, mal ouvia a campainha da bicicleta na rua da frente, Shabnam agarrava no seu prato e na taça, e descia apressada as escadas do prédio para se ir sentar no muro, na companhia das irmãs, a comer o pequeno-almoço que a mais velha comprava ao vendedor ambulante.
– Que saudades tenho daquele pequeno-almoço! – confessa. – Comíamos idli ou dosa, são ambos feitos a partir de arroz e lentilhas, finamente triturados até formarem uma pasta, que por sua vez vai a cozer, o idli ganha uma consistência de pão, e a dosa é como uma fina panqueca. Eles são a base da refeição, e acompanham diferentes molhos, chutneys, e sambar, um estufado muito rico com base de vegetais e lentilhas. Não trouxe para Portugal a minha máquina de moer, faz-me falta para conseguir obter aquela fina pasta de arroz e lentilhas…
Esta máquina de moer, tal como muitos outros objetos que uma família acumula durante uma vida, estão por esta hora arrecadados para lá de uma porta trancada num quarto em Mumbai, o quarto de casal de Shabnam. Mas já lá vamos.
Durante a infância e adolescência, Shabnam viveu com os seus pais e irmãos num bairro onde o Hinduísmo era a religião predominante. Eles eram os únicos Muçulmanos, junto com indianos vindos do sul da Índia, bem como de outros estados.
– Estávamos todos próximos, diferentes línguas, diferentes religiões e crenças. Mumbai é procurada por muitos migrantes de outros estados da Índia, que trazem a vontade de ali alcançar melhores condições – conta ela.
E a diversidade concedia ao bairro um odor aromático, tantas mais janelas abertas houvesse. «O que está a cozinhar hoje?», perguntava Shabnam às vizinhas que por vezes lhe davam a provar, assim como quem alimenta um passarinho que faz uma visita ao beirado da janela.
– Eu tinha curiosidade pelos diferentes hábitos e rituais que via na minha vizinhança, procurava aproximar-me e saber mais.
Mas Shabnam teve de encontrar o balanço certo entre essa aproximação interessada, e o resguardo aos comentários que por vezes surgiam contra a sua família.
– Nós éramos uma família grande, os meus pais tiveram onze filhos, quatro rapazes e sete raparigas, dois anos de intervalo entre cada um de nós. A vizinhança criticava dizendo «Estes Muçulmanos vêm para aqui fazer crescer a população!…», e também havia crianças que nos gozavam. Eles fizeram-me pensar que nós não éramos bons. «Estas crianças fazem muito barulho!», queixavam-se ao nosso senhorio, mesmo que os filhos deles estivessem a brincar connosco, apenas nós éramos culpados pelos distúrbios.
E enquanto os pais geriam um negócio de móveis, entre os fornecedores e a loja aberta ao público, as crianças iam à escola e organizavam-se no cuidado da casa e dos irmãos mais novos.
– Aprendi a importância de não depender dos meus pais, não ficar à espera que as coisas aparecessem feitas. Eles estavam ocupados a trabalhar para a família, e nós tínhamos de cumprir a nossa parte e cuidar do resto.
Mas à medida que as raparigas cresciam, outras vozes críticas surgiam dentro da família, e os tios pressionavam o pai de Shabnam, dizia um: «Porque é que deixas as tuas filhas estudar tantos anos? Para quê, se depois de casarem vão para casa dos maridos e ficam a tratar dos filhos e da vida doméstica?» e acrescentava outro: «Além disso, quem casará com elas se tiverem uma formação muito elevada? Elas deixam de nos ouvir e não obedecem aos maridos…»
– O meu pai não tinha medo de discordar, e respondia-lhes «Se as minhas filhas querem estudar para serem mais do que donas-de-casa, é uma decisão delas e eu apoio. Estou confiante que elas saberão gerir uma casa e os estudos ao mesmo tempo». E assim, no dia em que o meu pai me perguntou o que é que eu queria fazer, eu pude dizer-lhe: «Pai, quero continuar a estudar, quero fazer a minha licenciatura», e o meu pai concordou.