– À medida que crescia, ia deixando a inquietude da infância para estar cada vez mais atenta ao que se passava à minha volta – conta Shabnam. – Aprendi muito por observação. Havia várias famílias da minha vizinhança que costumavam viajar e escolhiam a Europa como destino de férias. Lembro-me de me sentar com elas, debaixo da enorme figueira-de-bengala ao centro do nosso quarteirão, a ver as fotografias que tinham tirado junto à Torre Eiffel e outros locais.
Esta foi para Shabnam uma realidade diferenciadora, em comparação com outras áreas de Mumbai onde predominavam as favelas e os bairros pobres, e onde dificilmente se concretizam sonhos de Europa.
– Pude contar com a proximidade de escolas e universidades, e felizmente com a concordância dos meus pais. Estudar fez toda a diferença. Na minha vizinhança conseguia ver o que estudar fazia às pessoas, via as melhores condições de vida que conseguiam, e isso inspirava-me. Inspirava-me observar o sucesso dos outros e aprender com ele.
Este entusiamo com o sucesso não era particularmente dirigido a pessoas ou situações platónicas e distantes, era antes desencadeado por gente de carne e osso e pela sua realidade quotidiana. Não teria ainda dez anos quando, num dia de Educação Física, depois de saírem da escola alinhados numa fila em direção ao estádio contíguo onde estas aulas decorriam, Shabnam apercebeu-se das capacidades da irmã mais velha.
– Era um estádio grande onde se realizavam habitualmente jogos de críquete, e onde o nosso professor nos costumava levar. Eu sabia que a minha irmã era uma boa desportista, mas nesse dia vi o seu desempenho na corrida e no salto em comprimento. Ela era a melhor. Então pensei «Se ela consegue, eu também consigo.» E comecei a praticar atletismo. Com catorze anos fui campeã, e entregaram-me a tocha de fogo para com ela correr à volta do estádio, lembro-me do público, tanta gente a bater palmas…
Pouco tempo depois desse dia feliz e orgulhoso, uma mudança profunda desmontou a vida desta família, e o ano de 1992 marcou essa viragem, com o estalar de um grande conflito em Mumbai entre Hindus e Muçulmanos, despoletado pela destruição de uma mesquita.
– Muitos Muçulmanos saíram de Mumbai, com medo de represálias, e fugiram para uma povoação afastada onde uma comunidade muçulmana já se havia estabelecido. A minha família também fugiu para lá, à exceção das três filhas mais velhas, que me incluía, por estarmos nos últimos anos do ensino secundário. Essa povoação remota dispunha apenas de uma escola básica, o meu pai conseguiu matricular os filhos mais novos, mas não havia ensino para nós. Então, por causa da nossa educação, tivemos autorização para ficar em Mumbai. O meu pai queria ficar connosco, mas era demasiado arriscado para ele.
Nos longos anos que se seguiram, o sentimento de insegurança era sentido diariamente, mas o privilégio do acesso à escola impulsionava o passo acelerado à saída de casa.
– Tinha completado os meus 21 anos quando me mudei para junto da minha família. Foi a primeira vez que ouvi os altifalantes de uma mesquita chamarem para as cinco orações diárias.
Nos anos seguintes Shabnam completou o curso e começou a trabalhar como advogada.
De manhã cedo, já as rotundas de Mumbai se transformaram num grande nó de carros que se bloqueiam entre si, pelo que Shabnam se punha a caminho do tribunal na sua scooter, procurando as abertas para contornar o trânsito instalado. Este é o cartão de estacionamento do tribunal, que a autorizava a parquear no interior do complexo. Shabnam entregou a scooter ao irmão quando veio para Portugal.