– Maria Tavares – só Maria Tavares.
Encontramo-la no alpendre de casa, sentada em uma cadeira desirmanada à conversa com a cunhada “é como minha irmã”.
Os olhos vidrados sabem olhar em profundidade, que é coisa dos antigos, e os dela têm a destreza de nos pôr à prova.
A infância e juventude foram divididas entre ilhas do Atlântico: nascida em Cabo Verde, foi com 7 anos para São Tomé e Príncipe trabalhar, regressou a Cabo Verde aos 13 anos, onde mais tarde conheceu o seu marido, viajando juntos para São Tomé por mais nove anos. “E então vim para Portugal, cheguei cá em 1972, dois anos antes de rebentar o 25 de Abril.”
– O meu marido veio para Portugal primeiro, e depois chamou-me, vim eu e as crianças, quatro filhos, três meninas e um rapaz, eu tive mais filhos mas morreram. Desde São Tomé a suportar sozinha. Fiquei muito mal, nem saía de casa, sofri muito… Não foi o trabalho que me fez sofrer, fosse qual fosse a qualidade, trabalho para mim era brincadeira. Mas a morte…. Sofri muito com a morte das crianças.
– Com os meus filhos crescidos, disse-lhes que cada deveria procurar sua vida, porque eu já criei vocês todos. E cada um procurou, está cada um na sua casa, e eu só lhes desejo saúde e vida para não sofrerem como eu sofri, porque eu comi o pão que o diabo amassou! Fora de mãe, fora de pai, fora de tio ou tia, só com estranho… Quando eu estava a embarcar o meu pai disse-me: «Maria, é lá que você vai precisar de mãe e de madrinha e não vai ter…». Mas às vezes podemos estar no meio da família e não ser abraçados como nos abraçam outros que vamos encontrando no caminho. Então eu tinha mãe, tinha pai, tinha irmão porque amava todos. Com bom coração eu tinha tudo, porque abraçava todos. É que a amizade puxa, o amor puxa.
– É uma condição que eu tenho, com toda a gente – tanto com crianças como com gente grande. Não procuro a raça não. Toda a raça é irmã. Tudo é filho de Deus, toda a raça é irmã. Mas não esquece que eu tenho orgulho da minha pele, tenho orgulho da minha cor.
– Comecei por viver em Oeiras, a casa tinha apenas um quarto e uma sala, com as crianças não chegava. Foi a minha comadre da Quinta da Princesa que me encaminhou para este chão. Estava toda a gente a tirar terreno para fazer casa, e ela marcou a área para mim, e chamou-me pelo telefone, «Vem cá conhecer o sítio», o meu marido estava a trabalhar em Vila Franca de Xira, e eu vim cá sozinha. Assim podia ficar perto dela, nós íamos juntas para Lisboa, trabalhar no mercado. Já trabalhei no mercado, como mulher-a-dias, num restaurante. Batia às portas e perguntava «Precisa de empregada?». Já tive patroas que eram elas quem me ia procurar a casa para me chamar para trabalhar. Agora estou sentada, agora descanso. Se os meus filhos me quiserem dar um bocado, dão, se não «puxa agasalho para ti que eu tenho para mim».
– A minha comadre conseguiu casa na Quinta da Princesa, mas eu já não consegui, então vim começar aqui. Eu e a minha vizinha do lado.
– Como é que se começa a criar um lugar para viver?
– Eu vim abrir mato! Quando cheguei cá só havia pinheiro. Então primeiro pega na enxada e limpa o mato todo, tira a capina, deita para fora, assenta chão, eu começo a tirar medida da casa. O meu irmão é pedreiro e eu chamei-o para me vir ajudar. Eu vinha de Oeiras para vir fazer o lume e cozinhar para os trabalhadores. No início só vivia eu aqui, e Vininha lá de cima. Comecei a chamar gente, não queria ficar aqui sozinha! Depois veio a Alda, depois a Alcinda com o Coelho… Este cemitério já foi feito comigo aqui.
Por entre as ervas, quando começa a aparecer um caminho, alguém ali passa regularmente. Foram os pés de Dona Maria que fizeram caminho.
– Diziam-me «Esta mulher é pequenina, mas que diabo, ela é rija!» – É porque sou filha de rijo – meu pai era rijo, minha mãe era rija, como é que eu não vou dar rija também? Eu pegava na enxada e cavava, os homens diziam «Isso é mulher?!» Fazia tudo brotar. Cebola, alho, ervilha, e tinha de ir com o carrinho buscar a água longe para regar a horta.