Corredor central

Encontramo-nos com o José no espaço do Tutores de Bairro, o projeto Escolhas da Quinta da Princesa onde ele trabalha. É de manhã cedo, as crianças estão na escola, e na casa do projeto resiste o silêncio a esta hora.

– Nasci o Hospital Velho de Almada, há 37 anos. Tenho duas irmãs mais velhas. Os meus pais vieram de Cabo Verde, e moraram inicialmente nas Paivas. Depois mudaram-se para o Monte da Caparica. Quando eu nasci morávamos lá, e ali vivi até aos meus 18 anos. Por essa altura mudei-me para o Fogueteiro.

Se lhe pergunto sobre a presença de Cabo Verde na sua vida, o José diz que conhece pouco do país, que apenas visitou por duas vezes. A sua vida desenrolou-se em Portugal, e as amizades também. Em casa o crioulo é a língua doméstica, mas sendo ele nado e criado em Portugal, o seu à-vontade com a língua não foi direto, e só depois de uma primeira viagem de um mês a Cabo Verde aos 10 anos, é que a língua local se lhe desbloqueou na boca. Nota o mesmo em amigos e nos sobrinhos que nunca fizeram esta viagem, «Como com qualquer língua, é preciso praticar, e não há nada como estar no país de origem da língua.»

– Estou a trabalhar na Quinta da Princesa desde 2009. Mas não trabalho aqui com a ideia de que vou mudar o lugar, isso é impensável.

Mas enquanto faz a sua parte, José tem sempre presente que é um trabalho diário com as pessoas e para elas, pois são as pessoas que têm o poder de criação e transformação do seu sítio.

– Não se pode tomar um lugar pelos estereótipos a ele ligados, pelas notícias, pelos slogans a ele ligados. As pessoas são mais do que isso. E se num determinado lugar há bom, aqui também há bom. Para o bem e para o mal, há situações semelhantes em todo o lado. Todos temos telhados de vidro. É ao nos aproximarmos das pessoas e ao ouvirmos as suas histórias que conseguimos construir mais, que conseguimos entender para lá dos estereótipos.

E ao trazermos a palavra “comunidade” para a conversa, José comenta:

– Comunidade é ligação, é comunicação, é espaço comum. É muito importante estarmos num grupo em que aquilo que eu digo vai ser ouvido por outra pessoa, vai ser valorizado, e vice-versa. Na Quinta da Princesa temos isso.

José vai mais além, e amplia esta ligação ao lugar espaçoso que é a Margem Sul.

– Parece-me que aqui se nota uma maior ligação, comparativamente a outros locais, temos um sentir de comunidade. Isso é algo que distingue a Margem Sul, e é bom. Nota-se que atualmente as grandes cidades tendem a incorporar esta ideia de comunidade, tendem a replicar este espírito. Se houve uma altura em que não se dava valor, atualmente já se valoriza, já se quer ir buscar isso, o que mostra que se reconhece o seu valor. Ao crescermos juntos, crescemos mais integralmente, e os dias não se repetem.

Sobre essa ausência de repetição, José reflete ainda:

– Há coisas que temos de aprender em determinada altura, porque se fica para depois não tem graça. Eu não aprendi a andar de patins quando era pequeno, agora também não o vou fazer – se descer a rua de patins vou cair, é certo. Então não é agora crescido que me vou meter nisso…  Brincar na rua até às nove da noite, chegar a casa às nove e meia e levar nas orelhas, faz parte! Há coisas que têm o seu tempo, que se forem deixadas para mais tarde podem causar mossa porque não se leva bagagem. Mais tarde pode já não haver tempo. Há coisas que não é aos 18 anos que se vão aprender. Por exemplo, não é na adolescência que um jovem vai brincar com os seus pais. “Se não brincaste comigo quando eu tinha cinco anos, não é agora crescido que o vamos fazer!” O tempo passa e há coisas que não têm volta a dar.