O fado tem não sei quê
“O Fado é uma forma de expressão e um estado de espírito. Quanto mais próxima estou do Fado e deste modo de vida, mais ele se torna presente como a minha banda sonora, tanto na melodia como na poesia. O Fado é um mundo vastíssimo e estou sempre a descobrir coisas novas nele…”
Ana Margarida Leal, que me foi apresentada há uns anos como “Magui”, é uma mulher que profissionalmente equilibra os números e a música, numa parelha que funciona naturalmente bem.
A Magui fala-me dos três caminhos que revolve na descoberta deste “não sei quê” que diz que o Fado tem: umas vezes a melodia é o ponto de partida, e uma partitura tradicional pode ser transformada com as palavras que nela se encaixam. Outras o poema é o arranque, e fica este sujeito à interpretação de quem o canta. Finalmente, aquilo que se escolhe dizer através do Fado e a forma como se diz resumem os grandes segredos para ela.
Que prende a vida da gente
Houve na sua vida um senhor de nome Carlos Leal que exibia com vaidade um cartão de apresentação que dizia “Alfaiate/Artista de Variedades”, e se não havia roupa para despachar, Carlos ia para rua. Magui lembra-se de descer Almada, em direcção à Fonte Luminosa, actual praça Gil Vicente, e ouvir o som de um acordeão – era o avô. Ele era um autodidacta e a forma espontânea como se lançava nas Variedades despertou na Magui um gosto profundo pela Arte. Ficou-lhe também um respeito intimidatório, diz ela, “Só comecei a cantar para os outros depois da minha primeira filha nascer, depois de ser mãe. Creio que foi uma questão de maturidade, um amparo na experiência de vida, mas também foi obra da coragem que ser mãe me deu.”
A descoberta de quem se é no Fado começa “pelo mimar, pelo imitar, mas vai-se avançando na procura da própria interpretação. É um processo moroso.” O seu tipo de voz baixo confortável nas notas graves, situa-a num contralto, o tipo de voz feminino mais raro, e nos que a ouvem pela primeira vez é fácil surgir a surpresa porque não lhe encontrarem os tons típicos de mulher, inclusive sobressaem alguns tons de homem.
Um nada que se não vê
Hoje é dia de ir aos Fados. Magui acorda as filhas antes das sete, prepara os pequenos-almoços e os lanches para elas levarem para a escola. Segue depois para o trabalho, dedicar-se a contas e a faturas e a datas de pagamento. Nestes dias a emoção fica-lhe mais à flor da pele e acelera-se na saída, como se esperasse pelo toque, vai a casa em contra-relógio para se maquilhar, mudar de roupa e procurar alguma serenidade preparatória, já as miúdas estão nos avós. Depois, ao cantar, é como se recuperasse a energia perdida, é o encontro consigo própria.
“O Fado é como se fosse o amante para junto de quem não se consegue evitar ir…”, diz como se pecasse. “Fado é teimosia.”
Cuida do tempo que entrega ao Fado e procura avaliar bem o espaço que lhe ocupa na vida “Preocupo-me acima de tudo em não deixar uma sensação de vazio nas miúdas.” Isto leva-a a considerar-se uma outsider no mundo do Fado na medida em que não se envolve nas tricas e no vaudeville paralelo, para o qual não tem tempo. “Não tenho tempo para isso como também não o tenho para a meditação, a massagem, o creme e o treino focal profundo antes de ir cantar…Concentro-me no trabalho de voz e no seu repouso, tal como os músicos que estão comigo têm de se preocupar com a afinação das guitarras.”
Um tudo que a gente sente
“Quando canto estou completamente ali. O presente está presente. E não estou sozinha, estou em comunicação com os músicos e com o público. Num trabalho de fazer despertar sentimentos. A Arte é essencial para nos fazer sentir coisas, numa sociedade cada vez mais anestesiada e superficial. Canto para estrangeiros que me vêm dizer «Não percebi nada do que disse, mas senti tudo.»”
E entretanto a Magui vai metendo o Fado nos dias como pode. “Ontem fui comprar fichas de matemática para as minhas filhas e vi um livro de fado, dos poetas que a Amália cantou. São fados antigos e eu gosto de os procurar. Às vezes vêm-me dizer «Não ouvia esse fado há tanto tempo!…» Comprei o livro, tenho-o lá para o ir lendo.”
Nesta forma de estar na vida ela remata: “Quero continuar a procurar-me no Fado, essa é a sua grande riqueza, e é isso que leva ao constante deslumbre.” Um deslumbre que é para ela aquele «tudo que a gente sente».
Destino Marcado
O fado tem não sei quê
Que prende a vida da gente
Um nada que se não vê
Um tudo que a gente sente.
Poema de Fernando Farinha