As decisões criam-se a partir de breves situações que nos acontecem, pequenos fragmentos que vamos reunindo e organizando, até aquela miscelânea se começar a parecer com alguma coisa, e nos encaminhar a uma ideia, uma vontade, ou uma nova escolha que se começa a desenhar.
Os primeiros esboços da Europa na vida de Shabnam podem ter começado sem que ela se desse conta, quando em menina ela tentava espreitar as fotografias que circulavam entre as mãos das vizinhas chegadas do aeroporto, ou quando passava um filme estrangeiro na televisão e pouco lhe interessava o enredo, atenta que estava à paisagem, às cidades e aos figurantes lá atrás, o que faziam eles ou como se vestiam.
Mas certamente que a profissão do marido foi determinante.
– O meu marido trabalhou durante 12 anos como guia turístico na Europa, acompanhando grupos vindos da Índia. Todos os anos, com a chegada da Primavera, ele andava muito contente por fazer aquele trabalho e estar na Europa até meados do Verão. Telefonava-me dos países que visitava, contava-me o que via, o que comia… E eu ficava a imaginar essa Europa, como seria ela, como seriam as pessoas e o seu dia-a-dia. A empresa pedia-lhe disponibilidade durante parte do ano, e ele raramente conseguia um trabalho para cobrir os restantes meses. Além disso, como eu ficava sozinha com os meus filhos, só conseguia fazer um horário reduzido no tribunal, por forma a conseguir cuidar deles e da casa e do meu escritório, pelo que também não estava a ganhar muito. Conhecia outros advogados que, por terem feito o curso num país estrangeiro, estavam na Índia a ganhar o triplo de mim. Seria igualmente benéfico para o futuro dos nossos filhos se eles completassem os estudos na Europa. Percebemos que tínhamos de optar. «E se fizermos esta mudança em família?», propus.
Avançar com o pedido dos vistos foi sentido pelo casal como um teste à sorte, mas quando a emissão foi aceite, a esperança transformou-se numa possibilidade.
Seguiram-se dois meses da maior intensidade.
– Encerrei todos os processos de clientes que tinha em mãos. Tirei todas as minhas coisas do escritório e terminei o aluguer. Começámos a separar as coisas que viajariam connosco sem saber por quanto tempo estaríamos longe. Comprámos os bilhetes de avião. Reuniões no banco e nas escolas dos miúdos. Empilhámos todas as nossas coisas que ficariam na Índia no meu quarto, e por fim fechámos a porta e alugámos o resto da casa. A inquilina precisava de entrar no dia 1 de novembro e a nossa viagem estava marcada para o dia 5 desse mês. Por cinco dias mudámo-nos para casa da minha mãe, que loucura, aqueles dias… Nessas últimas três semanas eu mal dormi.
Experiente nas insónias, aquele dia 5 de Novembro de 2019 foi a derradeira prova.
– Todos os anos eu acompanhava o meu marido às partidas do Aeroporto de Mumbai, mas era a primeira vez que eu tinha de passar por todo aquele aparato. Eu não fazia ideia.
E o tempo já ia curto…
– Estávamos atrasados para o voo internacional. Corremos para ir despachar a bagagem, o mais novo a chorar, eu ouvi um rapaz fardado gritar «Emirates! Emirates!», imaginei que ele estava à procura de alguém e não dei importância, ele perguntou-me diretamente «Emirates?», e eu simplesmente encolhi os ombros e disse-lhe que não. Finalmente descobrimos qual era a nossa fila para o check-in, a senhora perguntou se eu levava computador, «Sim, está na mala grande», «Não! Não vai para o porão, tem de ir consigo na mala de mão». E sem sabermos, os passageiros estavam nesse momento a embarcar. O meu marido pediu ajuda «Por favor, não deixem esse avião partir, estou com a minha família, esperem por nós!». Indicaram-nos: «Vão por aquele lado, depois por aquele», o meu filho do meio tem asma, ele aflito a correr atrás de nós, o mais novo a pedir água, o meu marido a correr na frente para tentar que o avião não descolasse. Entretanto a senhora do check-in deve ter avisado a equipa, havia gente no caminho a dar-nos indicações, «Apanhem aquele elevador, sigam por aquele corredor». Quando finalmente pus um pé dentro do avião…pensei que todos os passageiros tinham assistido pelas janelinhas à nossa corrida louca, porque nós estávamos tão atrasados. A assistente de bordo levou-nos aos nossos lugares e foi um alívio tão grande! Se tivéssemos perdido aquele avião, de Mumbai para o Dubai, não havia forma de conseguirmos outra ligação para Lisboa, todo o investimento estaria perdido e o plano de vir para a Europa acabaria ali.
E mesmo com a calmaria da noite e do sossego que aos poucos se instalava no avião, Shabnam não conseguia acalmar o batimento do coração, nem descansar os cantos aos lábios.
– Saí pela primeira vez da Índia quando apanhei o avião que me traria a Portugal. No total foram cerca de 20 horas de viagem. Saí de Mumbai com 45 graus e quando aterrei em Lisboa estavam 18, senti-me tão bem! Mumbai é muito quente durante a maior parte do ano, somos dependentes do ar condicionado, nem as ventoinhas nos servem, não chega.
Selfie a bordo do avião