Três tâmaras

SEGUNDA TÂMARA (16 de Maio de 2019, quinta-feira)

O despertador de Ahmad toca de madrugada acordando-o para o Su-hoor, a primeira refeição, o seu pequeno-almoço. Normalmente opta por fazê-la o mais tarde possível ainda que a noite lá fora pareça cerrada e a luz do sol distante. Prepara finas fatias de pão que tempera com sementes de sésamo, tomilho e azeite, e que leva ao forno. Come iogurte e uma maçã. Se há sobras do Iftar há quem as termine no Su-hoor. Por fim, e antes de se sentar à mesa a comer, lava rapidamente a loiça e a bancada, cuidadoso com o barulho para não acordar os colegas de casa.

“Logo passo no supermercado para comprar melancia”, planeia Ahmad. O mais importante é evitar alimentos salgados que intensifiquem a sede que surgirá durante o dia, e tornar esta refeição fresca e eficaz em calorias, investindo no consumo de líquidos.

Lá fora a luz amarela dos candeeiros resiste e há um silêncio em camadas que avoluma a madrugada.

Uma aplicação no telemóvel faz soar um sinal de aviso no horário das orações, um lembrete que se adianta, já que no Miratejo a mesquita não canta na chamada para a oração. Ainda não são seis quando o telemóvel pisca no primeiro chamamento indicando que é tempo de parar de comer para se ir lavar e preparar-se para rezar.

No chão do quarto Ahmad estica o seu tapete da oração e posiciona-se em direção a Meca, o lugar sagrado de referência. Ahmad fala baixinho para consigo enquanto pensa que, no seu entender, de entre os cinco pilares do Islamismo, o Ramadão é aquele cuja intenção é a mais subjetiva, o que permite a cada um encontrar uma razão pessoal para os sacrifícios deste mês. “Para mim o Ramadão desenvolve-nos a empatia com aqueles que não têm bens, que não têm acesso fácil à alimentação. No nosso dia-a-dia a comida e a bebida estão no centro das nossas vidas e penso que quando não comemos sentimos que temos maior poder sobre nós.”

Mas Ahmad apressa-se a ressalvar, “O jejum não deve, no entanto, ser feito caso existam problemas de saúde. Uma mulher menstruada não deverá jejuar pois isso provocará um desequilíbrio na sua saúde, ou se a mulher estiver grávida e o médico desaconselhar. Por outro lado, beber água para a toma de medicação é perfeitamente permitido. O principal é o ser humano e a sua saúde. Não observar a saúde isso sim será errado, proibido.”

Ahmad quer aproveitar para descansar mais um pouco. E enquanto o sol se desprende do horizonte, ele baixa novamente a persiana e acerta o despertador para dali a duas horas.

Na Jordânia, a mãe foi a primeira a acordar para preparar o Su-hoor para a família. Hoje é ela quem acorda todos na casa para que se juntem para a refeição. Normalmente revezam-se na preparação do Su-hoor, e a cada dia o despertador toca mais cedo num quarto diferente da casa. Depois de comerem rezam juntos, e cada um segue depois com a agenda individual do dia.

Haijar auxilia o marido na saída matinal, assegurando-se que ele leva tudo o que necessita para o dia, e entregando-lhe ainda a pequena lista de compras para o Iftar. No gabinete de advogados onde Khaled trabalha o horário é ajustado durante o Ramadão: a manhã inicia-se uma hora mais tarde e ao final do dia sai-se uma hora mais cedo, correspondendo aos horários do tribunal, bem como ao dos serviços governamentais. Haijar por seu lado usufrui de uma interrupção no calendário laboral – ela é diretora de uma escola na Arábia Saudita, e ainda que o Ramadão não seja a causa direta para esta pausa no ano lectivo, procura-se a coincidência.  Os ajustes ao ritmo de trabalho não são raros, principalmente nas funções que implicam esforço físico ou que são organizadas por turnos, que são transferidos para o horário noturno. Há cuidado na redução de horas para aliviar o dia e evitar que o trabalhador se sobrecarregue sob o calor e o esforço no período em que não come nem bebe.

Ahmad está no Miratejo a realizar um programa de voluntariado internacional na Rato-ADCC – Associação para a Divulgação Cultural e Científica, com a duração de 10 meses. De entre o grupo de trabalho, composto em parte pela equipa portuguesa fixa a que se junta a presença mutável dos voluntários, ele é o único muçulmano. Ahmad é discreto e pratica a sua fé sem alardes. Quando o seu telemóvel assinala a hora da próxima oração, ele sai da sala de trabalho e resguarda-se na sala de reuniões ou numa outra que esteja livre. Traz consigo o casaco de ganga que estende no chão, e ao ajoelhar-se poisa sobre ele as mãos e a face como quem beija. “A oração pode ser feita em qualquer lugar, procuro apenas que o local esteja limpo e cubro o chão onde vou rezar, com o casaco, um lenço ou uma folha branca por exemplo”, explica ele.

Guarda para a sexta-feira a ida à mesquita, pois a oração desse dia é especial, e todos os dias reza em casa ou no escritório.

Ahmad sabe que a mãe se cansa das tarde em casa, tem tudo feito e parece-lhe que o tempo demora muito a passar até ao Iftar. É comum ela deixar a televisão ligada, para além da companhia que sempre faz, os canais televisivos nacionais têm um relógio que acompanha os horários diários importantes e que faz as vezes do alarme do telemóvel que Ahmad usa. É costume também assistirem a um programa em que se vai explicando os 99 nomes de Alá, e esses também são momentos que servem a reflexão. E enquanto o pai não regressa a casa, Ahmad imagina os irmãos a dormitar, a sair para fazer algumas compras que tenham ficado esquecidas, no quarto a rezar ou a ler o Corão. “Eu e o meu irmão gémeo costumávamos ir comprar o Qamar al-Din, um sumo de alperce que habitualmente bebemos durante o Ramadão”.

A sua família está a mudar. De entre os três irmãos e duas irmãs de Ahmad, o mais velho casou este ano e saiu de casa, o segundo está noivo, uma das irmãs também está noiva. Ahmad experiencia pela primeira vez o que é ser cunhado e as mudanças que os casamentos trazem à dinâmica familiar. “Na nossa cultura não se namora, não há essa fase. Começa-se pelo compromisso ao se ficar noivo de alguém e isso antecede um casamento certo.”

A mesma lógica se aplica às refeições durante o Ramadão – não se fazem petiscos, todas as refeições são importantes e robustas. Pela prática de cozinhar para os outros, em particular durante o mês de Ramadão, na família de Ahmad é costume organizar-se o Iftar em casa de vários familiares, ora é Haijar quem convida, ora comem em casa de uma tia, ou se juntam todos na casa do avô. Como são muitos e as casas não têm uma assoalhada onde todos caibam, divide-se a família por gerações, os primos juntos numa sala, os tios mais velhos noutra.

Após a refeição vêm um pouco de televisão enquanto bebem o café acompanhado de pastéis, ou vão bebê-lo à rua, enquanto aguardam pelas dez da noite para ir à mesquita. A frescura e o alimento que o pôr-do-sol permite desloca para o período da noite as actividades sociais, as conversas na esplanada, as brincadeiras dos garotos nos passeios e nos parques com as energias repostas. O dia, por seu turno, fica reservado à introspeção.

E Ahmad, na preparação do Iftar seguinte, partilha: “Foi a minha mãe que me ensinou a cozinhar. Com ela aprendi a usar o que tenho diante de mim, por isso cozinho muito a olho. A internet também vai ajudando com alguma receita com que não esteja tão à vontade…”

Cozinhar o Iftar levou-lhe tempo, é também tempo de interioridade e pensamento.

E eu ainda lhe pergunto: “É tempo de saudade, este Ramadão longe da família?”

“A vossa Saudade é muito profunda”, diz ele. “Acho que é saudade o que sinto, sim.”