São poucos, mas muito específicos, os utensílios de que necessita para a profissão: a pedra de esmeril e o motor para a fazer rodar aceleradamente, a caixa de ferramentas e alguns trapos, é tudo quanto Carlos precisa para dar resposta às necessidades e vazão aos pedidos.
A ele já não o vemos a cruzar as ruas de Almada fazendo-se anunciar com a gaita de pã, já foi tempo! Ele tem lugar cativo em localizações estratégicas – quarta-feira assenta arraiais junto ao mercado de Almada, sexta-feira no mercado da Cova da Piedade, sábado no Feijó.
A primeira vez que fiquei à conversa com ele foi na Rua de Olivença. Ele chegou a meio da manhã, fixou a motoreta com um descanso triangular de ferro na roda traseira, sempre com tempo para cumprimentar a vizinhança, para ler as gordas no jornal do Olivença, para se preparar a si e à mota para os pedidos que poderão chegar. Cabe-lhe na manhã o tempo para tudo, já que os pedidos não são muitos, nada que se compare aos dias da sua juventude quando se iniciava no ofício.
– Comecei aos 14 anos, com uma bicicleta a pedais. Corri o país todo, do Algarve ao Minho – conta ele.
– Era altura de pobreza mas era quando se ganhava mais dinheiro – diz um senhor que se abeirou de nós para olhar de mais perto o cutelo que o amolar tinha nas mãos.
Carlos franze o olhar como se quisesse dizer com exactidão uma lembrança:
– Amolar uma faca custava 15 tostões, duas 25.
O homem despede-se, diz que vai dar a sua volta e que torna a passar por ali mais tarde.
– Mas afinal com quem aprendeu o ofício senhor Carlos? – pergunto eu.
– Aprendi com os fregueses.
– E porque é que se diz que o amolador anuncia chuva?
– Como arranjamos guarda-chuvas, e antes arranjava-se muitos porque não os havia baratos, começou-se a fazer essa associação, é uma brincadeira, se eu anunciasse chuva pode crer que não havia seca!
– E quando é que deixou de andar a assobiar nas ruas de Almada?
– Já há mais de 30 anos que venho para aqui. Antes eu ia lá dentro ao mercado para recolher as facas e depois de as amolar voltava lá para as devolver, nessa altura era tanta a gente que mal se passava. O mercado é uma boa localização, tem sempre gente, muita ou pouca, sempre vai dando. E assim sabem onde me encontrar.
Na Cova da Piedade o cenário é semelhante. A motoreta está estacionada junto à parede do mercado com um par de guarda-chuvas empoleirados no guiador e a caixa de ferramentas de madeira presa na traseira. O senhor Carlos procura o sol no passeio em frente onde conversa com um grupo de comparsas com um olho na mota caso alguém se aproxime com um pedido.
Uma freguesa traz-lhe uma tesoura de costura e um cutelo “Vou aviar-me das hortaliças e do que preciso para o almoço e já cá passo.”
Carlos aperta os botões da bata que lhe cobre a roupa e veste uma manga de ganga no braço direito. Liga a mota e usa uma fita de cabedal para encaminhar a força do motor para a pedra de esmeril que começa a rodar com uma velocidade contínua e ruidosa que se espalha na rua e abafa as nossas palavras. Assim, enquanto amola, não há meio de se distrair com conversas já que a pedra centrifuga a atenção e elimina a possibilidade de uma conversa que não seja gritada.
Ele coloca um pé no meio do chassi da mota por forma a elevar o joelho, sobre o joelho um quadrado de ganga e serve-lhe de apoio ao braço direito.
Dedica-se à tesoura, e aprecia-se-lhe o esmero desta dedicação: encosta um dente da tesoura à pedra áspera fazendo força sobre ela com os dedos, e saltam faíscas douradas do encontro entre o metal e a pedra que contrastam com a roupagem azul do amolador. A tesoura vai à pedra, vai à lixa de mão, é testada com os dedos, Carlos fecha-a várias vezes e se não está como quer volta à pedra para afiar mais uma secção, vai ao martelo para alinhar, Carlos aperta os lábios como se ajudasse, e assim a trabalha ao longo de vários e demorados minutos. Por fim testa-a cortando um trapo vindo da caixa de ferramentas.
Segue-se o cutelo e o processo repete-se.
Quando por fim termina e desliga a mota o silêncio volta à rua enquanto a pedra vai, lentamente, reduzindo a velocidade. No regresso da freguesa ela comenta-lhe que a tesoura já tem 40 anos.
Mais tarde voltei a procurar o senhor Carlos no mercado de Almada para lhe levar algumas fotografias que lhe tinha tirado e que ele me havia pedido “Sabe é que eu não vou à internet para as ver, depois peço a uma filha para mas mostrar, mas assim posso guardar estas.”
Carlos já tem a caixa de ferramentas aberta para trabalhar num cutelo e numa faca comprida. “Trouxeram-mos do mercado.” E finalmente conta: “Ontem fiz 72 anos. Jantei com as filhas em casa e deitei-me cedo. E pronto, é um dia quase como os outros. Hoje é manhã de vir para aqui, e aqui estou. É a minha rotina, é a minha vida.”