Três tâmaras

PRIMEIRA TÂMARA (6 de Maio de 2019, segunda-feira)

O tempo está morno no Miratejo, numa Primavera que avança pela metade. A Ahmad calhou-lhe bem o primeiro dia Ramadão num dia de folga. São seis da tarde e ele sai de casa com um saco de pano na mão. Faltam-lhe algumas coisas na despensa que precisa para preparar o Iftar que planeou. Compra batatas, cebolas, uma garrafa de óleo, uma lata de ervilhas, um pacote de leite, creme fraiche, natas.

Na cozinha desta casa que, por dez meses, será o lar, Ahmad desensaca as compras. Avança para a sobremesa que tem de ter tempo de ir ao forno. À base de sêmola de trigo, a basbousa é sobremesa para acomodar o estômago, não para encantar os olhos ou lamber os lábios. E Ahmad preparou-se para fazer duas doses, uma para casa, e outra para oferecer ao vizinho de cima que conheceu na mesquita. “Ramadão é partilha. Traz boa sorte cozinhar para outros que estejam a jejuar” – diz ele.

São seis e meia e o sol entrecorta-se nas folhas da árvore do passeio em frente da casa e aquece a cozinha com a sua luz serena. “Por esta altura a minha família já está a iniciar o Iftar. Eu vou ser o último a comer.”

Khaled e Haijar são os pais de Ahmad e estão ambos na cozinha na sua casa na Jordânia. Há muita gente que escolhe fazer o Mansaf no primeiro Iftar, mas para eles não lhes parece que tenha de ser aquela a primeira refeição. Farão o prato típico de arroz, cordeiro e coalhada fresca num dos dias do Ramadão, um outro dia.

Lá fora as ruas estão iluminadas, as casas têm luzes decorativas nas janelas e nas portas, há até quem compita no bairro pelo lugar de destaque com a casa mais bonita nas suas decorações de luz.

Quatro dos seis filhos cruzam-se nos aposentos, entram e saem da cozinha, põem a mesa, conversam, falam ao telemóvel, vêm os programas sobre o Ramadão que por esta altura se alinham na programação televisiva, há um burburinho constante. Aproxima-se o pôr-do-sol.

Soa o quarto chamamento do dia, soa na mesquita da rua e na outra que fica a uns quarteirões de distância, e em todas as mesquitas, criando camadas de Azan que se espalham pelo céu até às janelas e aos relógios e às vidas dos crentes. É altura de quebrar o jejum.

Deve comer-se o mais rápido possível. No bairro há rapazes que se posicionam junto aos semáforos para entregar tâmaras àqueles que ainda aguardam dentro dos automóveis por que o sinal abra e o caminho até casa se faça. Deve comer-se algo, o que quer que seja, e eles recolheram tâmaras da mesquita e posicionam-se agora em auxílio do outro.

A comida está na mesa e Haijar não a provou, não verificou se está bom de sal, se apurou como pretendido. O pôr-do-sol dá a permissão para comer, e só nessa altura a cozinheira verifica o preparado. Ninguém acusa a comida de insossa ou salgada, apenas agradecem a refeição.

Chegam as oito e meia no Miratejo e é a primeira vez que Ahmad está longe da Jordânia no mês sagrado do Ramadão. Põe a mesa, a travessa de frango e legumes no centro, o copo de água, a sobremesa cortada aos cubos. “Gosto do Miratejo, gosto de aqui estar. É um local tranquilo. E em relação a mim e à expressão da minha religião, sinto que ninguém quer saber – mas no bom sentido. Ninguém se importa. Cada um cuida de si e dos seus.”

Põe-se o sol sem que o vejamos a pôr-se, por detrás dos prédios e da distância. A mesa está posta. Ahmad começa por comer uma tâmara.

Na manhã seguinte, quando o sol surgir no horizonte, Ahmad iniciará as suas primeiras quinze horas e meia de jejum, no primeiro de vinte e nove dias sagrados.