A casa-cenário
A Sobreda, esse “lugar de sobreiros”, é território de particular interesse para Francisco Silva que a tem vindo a observar ao longo dos anos com os seus olhos de homem e investigador, dois olhares que, por passarem tanto tempo na companhia um do outro, mal se diferenciam entre si.
Quando nos anos 80, tinha ele 15 anos, palmilhava a Sobreda para um levantamento fotográfico do Património Rural do concelho de Almada, já na altura através do Centro de Arqueologia de Almada, admirou as inúmeras Quintas que enquadravam a região constatando que a viabilidade dos solos para a agricultura terá sido um dos aspectos centrais no seu povoamento. O próprio Solar dos Zagallos, que compreende as áreas outrora designadas por Quinta de Baixo e Quinta de Cima, entre o século XVII da sua construção e o início do século XX, teria a agricultura como principal fonte de rendimento.
No lado nascente do Largo, diante do Solar, subsiste um muro branco como única reminiscência da cerca do antigo Convento dos padres Agostinhos Descalços que ali terão estado a partir de 1677. O Convento disporia de grandes acomodações, uma excelente biblioteca, uma igreja dedicada a Nossa Senhora da Assunção e uma quinta com vinha e dois grandes poços.
“A família Zagallo não os tinha em grande estima, pois os frades estavam com o Liberalismo ao passo que os vizinhos da frente defendiam o Absolutismo.“
Esta predilecção dos Zagallos foi expressa na construção dos dois salões nobres do Solar, com intenção de adequar o espaço à recepção do rei D. João VI, pai de Miguel e Pedro, os irmãos de ideais incompatíveis. O rei, no entanto, nunca chegou a empreender esta visita. Durante a guerra civil que no início do século XIX confrontou os dois irmãos e as suas causas, o Solar chegou a acolher os militares do 1º batalhão do regimento nº5 da infantaria miguelista. O Convento foi extinto em 1833 no ano da Batalha da Cova da Piedade na qual a vitória dos Liberais representou o princípio do fim da esperança para os Absolutistas.
A importância da terra e da propriedade esteve sempre, neste lugar, profundamente relacionada com a presença de água em abundância. “O encanamento da água do poço interior para a Fonte da Bica que corre para o Largo foi feito por iniciativa de Francisco de Paula Carneiro Zagallo e Melo”, para regalo das lavadeiras e das gentes no geral.
Após 1863, com a publicação da carta de lei que abolia os morgados, “as propriedades passam a ser divididas pelos herdeiros ou por aqueles a quem pertencem e, portanto, valem muito menos.” O poder desvanece-se, passando da nobreza que o herdava por direito para a burguesia que ascendente financeiramente.
A família Zagallo termina o seu morgadio no início do século XX com a morte de um primogénito que não deixa descendência. “É nessa altura que o Solar é vendido a banqueiros, pessoas com dinheiro, os Piano.” A propriedade passa a quinta de recreio e a família designa-a por Quinta de Santo António.
“Quando os Piano compram a Quinta e o Solar compram também um estatuto, uma ligação com as pessoas. Percebem a importância fulcral da criação de laços com o lugar onde estão e com as pessoas que ali vivem como chave para o seu bem-estar. Promovem uma relação paternal com o povo, uma relação de dependência emocional.“
Atualmente, e em nome do Centro de Arqueologia de Almada, Francisco é um “contador” do Solar. Une os seus olhares de homem-vizinho e homem-investigador para guiar visitas que circulam pelo Solar ao longo dos tempos.
“Este é um lugar cuja evolução e continuidade ilustram os tempos de Portugal e do mundo, o contexto, o que se passa ao seu redor, ao perto e ao longe. Isso exige manutenção.“
Isso exige que se conte.
Imagens: Espólio do Centro de Arqueologia de Almada