A casa anfitriã
Maria Joaquina, a quem todos conhecem por “Quina”, viveu desde sempre na Sobreda.
Foi baptizada na Capela de Sto. António da Sobreda, a que integra o edifício principal do Solar. Devido ao mau estado em que se encontrava, a Capela era raramente utilizada, pelo que o baptismo de um neto Piano era a oportunidade para outras crianças das proximidades receberem também este sacramento. Nestas ocasiões, Maria do Rosário, esposa de António Piano, oferecia aos meninos pobres um pequeno enxoval.
Quina foi uma das primeiras raparigas da Sobreda a estudar para além da 4ª classe. Era uma criança franzina, “uma fraca aposta para força de trabalho no campo”, e a sua primeira professora deixou a recomendação à família que seria um desperdício se ela não fosse estudar. Quina passou os sete anos seguintes a apanhar a carreira para frequentar o colégio Frei Luís de Sousa em Almada levando consigo a advertência da mãe:
“Está ciente que tu não és como as outras – elas são ricas e tu não.”
A mãe de Quina trabalhava na costura. O pai trabalhava no campo, foi corticeiro numa fábrica da Cova da Piedade, vendedor de peixe ao volante de uma carrinha, motorista para uma casa particular. Até que alguém lhe comentou que o sr. Piano, que privilegiava recrutar os seus funcionários na Sobreda, estava a precisar de motorista. Passou assim a ser o pai de Quina quem, na Primavera, trazia a família Piano para o Solar, vindos da casa de Cascais onde residiam durante as estações frias.
“Ia-se ver os carros a aparecer, que eram muitos porque a família vinha acompanhada de uma comitiva de 30, 40 pessoas. A sua chegada era uma animação, toda a Sobreda fervilhava, tudo mudava aqui. A mim aquilo não me interessava.”
“Certo Domingo, a minha mãe vestiu-me a minha melhor roupa e disse-me «Quero que vás à missa lá abaixo aos Pianos.» Todas queriam ir a correr. Eu não. A minha mãe pôs-me fora do portão de casa para me forçar, mas eu fiz um estardalhaço tão grande, dei murros e encontrões ao portão porque não queria ser obrigada a ir e a mostrar-me, até que a minha avó apareceu e defendeu a minha posição. A mim aquilo não me interessava.”
“Quando a minha mãe me dizia que eu não era como as outras era verdade, eu não era mesmo. A subserviência não me encaixava, aquele adorar e corresponder…”
Ainda que de forma fugaz, Quina deslocava-se ao Solar diariamente para comprar leite fresco, ao fundo do pátio à esquerda, onde a caseira o preparava. O chão era de pedra larga e estava tudo sempre muito asseado. “Ó tia Maria Emília!” – chamava. “Já lá vou…” A caseira utilizava um púcaro como medidor para encher a bilha de alumínio de um litro que Quina levava entre as mãos.
Mensalmente dirigia-se à sala da costura, à entrada à esquerda, para receber as quotas da igreja. “As senhoras da casa estavam junto às janelas, viradas para o Largo do Rio, a costurar. Eu ficava à porta à espera que viessem ter comigo.”
Ainda que se deixasse ficar à distância, Quina testemunhou de perto a importância da família Piano na Sobreda.
“O sr. Piano tinha uma postura de proximidade e respeitabilidade. Reedificou a Escola Primária e o Clube Recreativo como dádivas à população. O dia da inauguração da sede do Clube, que havia sido construída de raiz, foi muito importante na consolidação da relação entre a família e o povo.”
E ao final da tarde, quando o jantar estava pronto na casa dos Piano, “a cozinheira tocava o sino para chamar para a mesa. Aquele som ecoava dentro dos muros do jardim espalhando-se depois pela vizinhança.” Tal como o ressoar do sino, que se expande pelo espaço e se prolonga no tempo, assim foi a passagem desta família pelo Solar.
Imagens: Maria Joaquina, espólio particular